• Jeitinho brasileiro: síntese do país que condena o governo, mas aceita “pular” algumas regras

    24/11/2015 Categoria: Esclarecimentos, Projetos e ações

    Pequenas corrupções nunca são malvistas pela população em geral, mesmo sabendo que alguém terá de pagar a conta no final

    Marcos Nunes Carreiro, Jornal Opção.

    Eixo Anhanguera, 11h08 da manhã do dia 18 de novembro de 2015. O ônibus do transporte coletivo para na plataforma e os passageiros começam a descer. O homem desce e interrompe a sua trajetória para observar o local por alguns minutos. Ainda não é horário de pico, então não há muitas pessoas entrando ou saindo do veículo biarticulado, embora já seja possível sentir que o fluxo começa a aumentar.

    Há algumas pessoas passando a catraca, mas nenhuma delas compra o bilhete no guichê da plataforma, mas com um dos ambulantes que vendem os ingressos ali. Um deles, um jovem, sequer compra a passagem. Chega com um copo na mão, aparentemente contendo um suco de abacaxi com hortelã e o equilibra sobre a grade com uma habilidade ímpar, mas é o próximo movimento que impressiona o observador: o garoto segura na grade e salta a catraca.

    A fiscal da Metrobus — empresa responsável pelo transporte público naquela linha — é também uma jovem. Talvez ela se sinta incapaz de forçar o rapaz a comprar um bilhete e por isso apenas o vê passar por si e ir esperar o ônibus junto com os outros passageiros. O observador da história fica ali; espera o veículo chegar; vê o rapaz entrar; o ônibus partir. Vira as costas, ultrapassa a catraca, ganha a rua e vai embora.

    O homem que viu a cena e permitiu que ela fosse contada aqui não sabe, mas pulos sobre as regras como esse têm um custo. Qual? Ah, não importa, afinal trata-se de uma malandragem, um jeitinho. Nada de mais. “O malandro fica na linha intermediária entre o ‘caxias’, que segue todas as regras, e o criminoso, que não segue regra nenhuma”. A fala do antropólogo Roberto DaMatta, tirada de uma entrevista concedida ainda em 2010, explica bem o porquê de uma malandragem não ser tão avessa assim à população.

    Mas o que é a tal da malandragem? Para DaMatta, é o dinheiro não declarado no Imposto de Renda, o sinal de trânsito que o sujeito fura, a gambiarra que as pessoas fazem para roubar energia. Acrescentemos o pulo da catraca. Vem daí aquela ideia de que o Brasil é o país da malandragem, do povo que se utiliza do jeitinho brasileiro para se locomover em sociedade.

    O estereótipo do país da malandragem não vem fazendo alusão àquele outro, o do “complexo de vira-latas”. Este foi preconizado por Nelson Rodrigues, e com razão para o período em que foi escrito, mas não é o ponto central desta matéria. A questão aqui é outra: trata daquelas ações ilícitas cometidas pelas pessoas, que as consideram erradas, mas não corruptas. Coisas como pular uma catraca. Trata-se da alegria carnavalesca do dia-a-dia, de vencer todas as possibilidades com o “jeitinho”.

    Um estudo feito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2012, aponta que 23% dos brasileiros não considera corrupção ações como subornar um guarda para evitar uma multa ou falsificar carteirinha de estudante. São pequenas corrupções. De novo: nada de mais. O “porém” da questão é que o país vive um momento de certa intolerância com a corrupção. Contudo, àquela praticada pelo governo; a do povo, não.

    “A malandragem”, afirma DaMatta, “é o sintoma de uma sociedade que tem uma relação ruim com o Estado”. Aí está. O povo resolveu cobrar mais de seus representantes, mas sua relação com eles continua ruim. Talvez por isso a população não se atente para o fato de que pequenas corrupções também dão prejuízo, um que se torna grande quando se somam todos os “jeitinhos” dados ao longo do tempo.

    No transporte público, por exemplo, atos como pular a catraca garantem um déficit de aproximadamente R$ 41 milhões no ano. Mas o poder público fala disso? Os empresários falam sobre o tema? Precisam falar, pois a solução para os problemas não passa apenas pela punição, mas principalmente pela conscientização das pessoas. Veio daí, então, a ideia de falar a respeito da situação.

    “Sem jeitinho, o Brasil tem jeito” é o nome da campanha lançada na semana passada pelo Set, Metrobus e pelo RedeMob Consórcio em parceria com secretarias do governo do Estado. O objetivo é conscientizar os usuários a não cederem às pequenas corrupções, como utilizar o cartão de estudantes e idosos, fraudando assim o uso do transporte público.

    Os motivos da campanha

    O universo de passageiros do transporte coletivo em Goiânia é grande. E 25% deles não pagam tarifa. São estudantes, idosos, deficientes físicos, carteiros do Correios, fiscais do trabalho, entre outros. Quem paga por esse custo são os outros passageiros, pois dentro da tarifa de R$ 3,30 está incluso esse valor que não é gasto pelos beneficiados. A esse cálculo dá-se o nome de subsídio cruzado.

    “Hoje, se fizessem uma lei dizendo que todo mundo precisa pagar a tarifa, o valor poderia ser 25% mais barata”, diz Décio Caetano, presidente do Set — órgão que até semana passada se chamava Setransp; a mudança se deu por um motivo: o sindicato mudou de nome para passar outra mensagem à população, a de que o órgão agora caminha “no sentido de avançar mais para um transporte público de qualidade”.

    Décio recebeu a reportagem na sede administrativa do Set, no Setor Aeroporto, para explicar o porquê da campanha. Décio diz que a ideia da campanha veio depois de uma ação que não deu certo. Ele começa explicando que a tarifa do Eixo Anhanguera é subsidiada pelo governo. O usuário que tem o Cartão Fácil paga R$ 1,65. O outro R$ 1,65 é custeado pelo governo. Quem não tem o cartão, paga R$ 3,30 normalmente. Atualmente, de acordo com Décio, 95% da população utiliza o cartão, afinal ninguém quer pagar mais caro.

    Contudo, o seguinte fato acontece: às vezes o usuário não tem o cartão, mas sempre tem alguém vendendo passagens. Essa pessoa, que geralmente está de colete Sitpass, tem o cartão e cobra da pessoa R$ 3,30. Porém, quando ele passa o cartão, é debitado R$ 1,65. Ou seja, essa pessoa ganha 100% de lucro. A questão: para cada vez que o cartão é passado, o governo tem que subsidiar mais R$ 1,65 para a Metrobus. Isto é, o Estado paga R$ 1,65 para que o cidadão também pague R$ 1,65. Mas, na verdade, o usuário está pagando R$ 3,30.

    Quem perde nessa história? O cidadão e o governo. Quem ganha? Só a pessoa que vende o bilhete. “E isso é fraude. O Estado gasta de R$ 6 a 7 milhões em subsídio de tarifa. Um valor que poderia ser menor, se não houvesse essa fraude”, afirma Décio. Aqui entra a proposta que não funcionou. Para resolver a questão, o antigo Setransp limitou o número de viagens por usuário a quatro. O objetivo era cercear a fraude.

    Foi feito um levantamento que constatou: apenas 1,19% de usuários do Eixo precisa fazer mais de quatro viagens por dia. Limitou-se o número de passagens. Às pessoas que representavam o 1,19% bastava pedir um aumento no número de viagens por dia. Para Décio, essa foi uma forma de não prejudicar o usuário e restringir a fraude. Porém, houve uma falha de comunicação e as pessoas reagiram. Resultado: tiveram que liberar. “Foi bom, pois partimos assim para a conscientização”, avalia.

    As fraudes

    Voltemos ao início da matéria. Pular catraca é, com certeza, uma das fraudes as quais a campanha pretende combater. Dados da RMTC registraram mais de 14 milhões de fraudes por ano nos terminais, plataformas do Eixo Anhanguera e dentro dos ônibus. No Eixo são 12,5 mil por dia, das quais 2,4% são de pulo de catraca; nos ônibus do sistema esse número chega a 37,8% no ano.

    Mas existem outras: acesso às plataformas pela pista exclusiva dos ônibus; pessoas que viajam na parte da dianteira dos ônibus e descem sem pagar; usuários que entraram pela porta traseira dos veículos; passageiros que passam de dois na catraca. Além disso, há aqueles que utilizam os cartões de beneficiados com passe livre ou meia passagem, caso de estudantes e idosos.

    “O estudante tem direito a 120 passagens por mês. Em alguns casos, ele usa para ir à escola pela manhã, mas a tarde o pai, a mãe ou um colega utiliza aquele passe. Isso é fraude, pois alguém está pagando por aquela passagem. O idoso da mesma forma. No mês passado, fizemos um convênio com o INSS, que nos mandou todos os óbitos existentes no seu cadastro. Fizemos um cruzamento com o nosso cadastro de beneficiados de passe livre. Só nesse primeiro mês, pegamos mais de 6 mil pessoas que já faleceram, mas continuam usando o ônibus”, relata o presidente do Set. Será o apocalipse zumbi?

    É sabido que o leitor gosta de comparações mais práticas. Ve­jamos: o levantamento feito pelo Set dá conta de que, sem as mais de 4 milhões de fraudes realizadas no cinco terminais e 19 plataformas do Eixo Anhanguera, seria possível disponibilizar mais de 50 ônibus novos para a operação do serviço. Mais: as mais de 6 milhões de fraudes dentro dos ônibus do sistema de transporte privam o passageiro de 63 novos veículos.

    Uma solução para o Eixo Anhanguera? Metrobus adere ao RedeMob Consórcio

    O transporte público de Goiânia tem muitas falhas. Ninguém nega — não há como negar e os motivos são muitos. Porém, se o serviço prestado está aquém daquele que a população espera, o RedeMob Consórcio é apontado como aquele que detém certo know-how, isto é, o conhecimento acerca da execução; sobre como fazer dar certo.

    Nos últimos meses, ouviu-se falar muito acerca de assaltos, arrastões e diversos outros casos de violência no transporte público de Goiânia. E a maioria dessas notícias está ligada diretamente ao Eixo. A questão, segundo os administradores, é que a Metrobus, sendo pública, tem dificuldades legais para dar respostas rápidas às demandas, como contratar seguranças para as plataformas.

    Por isso, a Metrobus, empresa responsável pelo gerenciamento da linha do Eixo Anhanguera, pretende entrar para o consórcio. Mas a Metrobus é uma empresa pública. Ela pode se associar a empresas privadas? De acordo com o presidente do órgão, sim. Marlius Machado afirma que é necessário apenas que haja uma autorização legislativa para que a ação seja concluída. “E já existe um projeto de lei, que está tomando forma no gabinete civil para ser encaminhada à Assembleia Le­gislativa em breve”.

    Nas palavras de Marlius, a Metrobus só tem a ganhar entrando no consórcio: “Sendo uma empresa pública, a Metrobus tem muitas amarras jurídicas e legais, o que nos impede de tomar ações rápidas. Por exemplo, para contratar uma empresa de segurança precisamos fazer uma licitação, o que demora em média 180 dias. Entendemos, então, que fazer parte de um consórcio que já tem know-how, nos dará condições de responder muito mais rápido à população, combatendo as várias situações de fraude e violência”.

    Isso não significa, porém, que a Metrobus será privatizada — não que a ideia esteja longe dos radares do governo; há muito se comenta sobre esta possibilidade. “Privatização não deixa de ser uma opção, mas esse não é o foco no momento em que visamos melhorar o transporte urbano. Traba­lhamos para que a empresa seja o mais eficiente possível. Esperamos que nos próximos dois meses já possamos dar uma resposta nesse sentido. Agora, a decisão por privatizar será do nosso sócio, que é o governo”, relata.

    Quem também comenta sobre esta solução para o Eixo Anhan­guera é Leomar Avelino, diretor-geral do RedeMob Consórcio. Ele afirma que temos tratado dessa questão com frequência, pois “parece ser uma prioridade da Metrobus: se integrar ao consórcio e utilizar do know-how que já temos na gestão de terminais, segurança e informação. Mas ainda não há uma definição”.

    Um dos méritos da RMTC foi ter reformado grande parte dos terminais de ônibus de Goiânia. Questionado se o mesmo será feito nas plataformas do Eixo Anhanguera, tornando-as mais parecidas com o que é visto em Curitiba ou Uberlândia, por exemplo, ele responde: “Não necessariamente. Na verdade é um conjunto de ações que precisa ser levado em consideração. A questão da estrutura é importante, mas a gestão é mais. Eu digo que colocar câmeras no Eixo Anhanguera e ter vigilantes nas plataformas em prol da segurança seria muito mais importante que uma mudança estrutural”.

    Uma questão prática: se der certo — e tudo indica que dará —, a tarifa aumenta? Segundo Marlius, não.

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